Internet, loteria, jogo do bicho e até água de coco: facções criminosas tentam expandir ‘negócios’ no Ceará
Grupos ampliam fontes de renda com monopólio de serviços e extorsão de comerciantes. Disputa territorial provoca violência e fusão entre facções rivais.
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Facções criminosas no Ceará têm expandido suas áreas de atuação para ampliar suas receitas além do tráfico de drogas.
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Entre setores que criminosos tentaram controlaram estão serviços de internet, jogo do bicho, loterias, cigarros e bebidas falsificados, setor de combustíveis, entre outros.
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Especialistas apontam que a “diversificação” dos negócios é uma forma de reduzir a dependência do tráfico de drogas como fonte de renda.
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Os processo de expansão, muitas vezes, ocorrem por meio da violência contra moradores e da disputa territorial com outros grupos.

Internet, loteria e até água de coco: facções criminosas tentam expandir ‘negócios’ no CE
Serviços de internet, jogo do bicho, loterias, cigarros e bebidas falsificados, setor de combustíveis, golpes virtuais, jogos regulamentados (bets), “taxa de funcionamento” para comércios e tráfico de drogas.
O g1 teve acesso a documentos que mostram como as facções criminosas no Ceará têm expandido as áreas de atuação para ampliar suas receitas – muitas vezes, isso ocorre por meio da violência contra moradores e da disputa territorial com outros grupos, resultando em conflitos armados e famílias expulsas de casa.
Especialistas apontam que a “diversificação” dos negócios é uma forma de reduzir a dependência do tráfico de drogas como fonte de renda, muitas vezes afetada por apreensões policiais.
A dinâmica financeira dos criminosos influencia diretamente a estrutura e até a sobrevivência dos grupos. A perda de territórios da facção cearense Guardiões do Estado (GDE) para o Comando Vermelho (CV) levou o grupo local a uma espécie de crise financeira.
O cenário difícil acabou precipitando a fusão dos cearenses com o Terceiro Comando Puro (TCP), rival do CV no Rio de Janeiro. Desde setembro, já há diversos relatos da atuação do TCP no estado, não só no tráfico de drogas, mas também mirando outros negócios, como o monopólio das apostas de loteria.
Por que ‘diversificar’ os negócios?
O envolvimento das facções no Ceará não se limita a atividades de grande alcance, como o fornecimento de internet. Casos recentes mostram como os criminosos têm tentado influenciar vários aspectos do cotidiano e dos negócios no estado.
Criminosos ameaçam vendedores na Beira-Mar. — Foto: Reprodução
No aplicativo, os suspeitos davam ordens e, sob ameaça de morte, exigiam que todos os ambulantes da Beira Mar comprassem produtos de um depósito da própria facção.
O professor Fillipe Azevedo Rodrigues, coordenador do Grupo de Pesquisa em Direito e Economia do Crime da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), explica que a “diversificação” dos negócios é uma forma dos criminosos aumentarem os lucros com outras fontes de renda além do tráfico de drogas e armas.
“Quando a gente, por exemplo, decide pegar um dinheiro que nós poupamos e decide onde a gente vai investir, a primeira coisa que é dita é, se alguém for lhe aconselhar bem, ‘diversifique seus investimentos, não coloque todo o seu capital, toda a sua capacidade de trabalho em uma coisa só’. E as organizações criminosas seguem essa mesma tendência”, explica.
Os criminosos viram no modelo das milícias do Rio de Janeiro uma oportunidade de explorar outras fontes de captação da renda, sempre buscando o monopólio, que garante o controle do fornecimento e dos preços.
“O tráfico se apropriou também desse modus operandi e começou a dominar áreas e até impediu o acesso a serviços públicos. E começou a ver que isso era muito lucrativo, porque você cria, querendo ou não, uma sociedade paralela, um Estado paralelo e essencialmente monopolista. O crime organizado, para prosperar, ele precisa operar em monopólios. Então, ele se torna isso, ele impõe isso à sociedade”, explica.
Monopólio da internet
Criminosos invadiram estabelecimentos para danificar estruturas de internet durante onda de ataques no Ceará — Foto: Reprodução
As investigações mostraram que, em alguns casos, o Comando Vermelho se aliou a donos de provedoras de internet locais para criar um monopólio do serviço nos bairros dominados, uma espécie de internet fornecida pela própria facção.
A tática do CV inspirou a facção cearense GDE a tentar o mesmo. Segundo testemunha relatou à Polícia Civil, o grupo chegou a ensaiar a abertura de um CNPJ, por meio de laranjas, para criar a própria provedora de internet para os territórios que dominava, mas o projeto não avançou.
As finanças da GDE e a fusão com o TCP
Informações obtidas pela Polícia Civil revelaram que, nos últimos meses de 2025, a GDE tinha uma receita de cerca de R$ 500 mil por mês. A maior parte do dinheiro não vinha do tráfico de drogas, mas principalmente do “aluguel” cobrado do jogo do bicho.
A “baixa” arrecadação mensal era um dos problemas enfrentados pela facção na disputa contra o Comando Vermelho, que avançou na conquista de territórios no Ceará. A situação piorou com a chegada ao Ceará da facção carioca Terceiro Comando Puro (TCP), rival do CV.
Para não perder espaço para mais um grupo de fora, a cúpula da GDE tentou uma “reestruturação” financeira, reduzindo “salários” e gastos com armamento. Assim como o CV, também ensaiou abrir uma provedora de internet para monopolizar o serviço nas áreas onde dominava.
A situação, porém, piorou. Entre agosto e setembro, o Comando Vermelho conquistou novos territórios estratégicos em Fortaleza, como o entorno do Porto do Mucuripe e a comunidade do Lagamar. As vitórias, inclusive, foram comemoradas com queima de fogos, em 15 de setembro, que terminou com vários presos.
Membros de facção são presos por tomar máquinas de apostas e exigir valores de prêmios — Foto: TV Verdes Mares/Reprodução
Como funcionava a facção cearense GDE, absorvida pelo TCP
Conforme levantamento da Polícia Civil do Ceará, a GDE possuía um elaborado sistema de captação e controle de recursos. A estrutura organizacional é ampla, mas de forma simplificada, pode ser dividida assim:
- Cúpula: liderança máxima da facção, recebe as drogas dos produtores e distribui entre os “frentes” dos bairros, que são os responsáveis pela venda de drogas naquela região
- Conselho Final: instância superior, abaixo apenas da cúpula. Decide sobre execuções e ações críticas. Controla 80% dos recursos da facção (armas, drogas, dinheiro, logística)
- Secundários: são intermediários entre as instâncias superiores e os membros nos bairros; são responsáveis por atividades como a “divulgação” das mensagens, o “batismo” de novos membros e a fiscalização dos territórios
- Frentes: são os “líderes” da facção nos bairros; recebem a droga distribuída pela cúpula e realizam a venda aos usuários
As principais movimentações financeiras da facção eram:
- Caixinha: os membros da facção precisam pagar uma contribuição mensal obrigatória, chamada de “caixinha”. O valor aumenta conforme o “cargo” que o criminoso ocupa dentro da estrutura
- Cotas: quantidade de drogas distribuída pela cúpula para os frentes; material é entregue como “fiado”, que deve ser pago à cúpula após um prazo e com juros
- Tráfico de drogas: o dinheiro arrecado na venda ilícita de entorpecentes para os usuários
- “Taxas”: cobradas dos negócios que funcionam nas áreas controladas pela facção, como o “aluguel” cobrado do jogo do bicho
- Multas: cobradas de membros com condutas consideradas indisciplinadas; valor podia chegar a R$ 1.500
Dentro do grupo, existem alguns “cargos” responsáveis por ajudar no controle das finanças:
- O “geral da caixinha” é o responsável por cobrar os membros que estão em atraso
- O “geral da biqueira” é o responsável por arrecadar mensalmente os valores dos “frentes” dos bairros
- O “punição” aplica multas a membros por condutas consideradas indisciplinadas. Em alguns casos, a punição pode ser a morte
Crimes continuam
Embora o esquema tenha sido revelado neste ano, ele funcionava, pelo menos, desde 2023. Um dos empresários ameaçados pensou que era golpe e não pagou. Dias depois, a fachada do seu negócio foi incendiada.
Comerciante do Centro de Fortaleza pagou R$ 10 mil para facção criminosa após ser ameaçado — Foto: TV Verdes Mares/Reprodução
A investigação mostrou que a facção extorquia Alexandre com cobrança mensal de R$ 400, depois aumentada para R$ 1 mil. Em agosto, porém, o comerciante enviou apenas R$ 400, sem o reajuste. Dois dias depois, foi morto.
O episódio mostrou que, apesar da tentativa de controlar negócios lícitos, as facções continuam cometendo diversos crimes que envolvem a captação de recursos por meio de golpes virtuais, extorsões e sequestros.









